segunda-feira, 21 de novembro de 2011

AUTOBIOGRAFIA E MEMÓRIA LITERÁRIA

UNIDADE 5


Este texto é parte integrante da Apostila de Teoria Literária, produzida pelos professores Antônio Wagner Rocha e Maria Generosa Ferreira Souto


PHILIPPE LEJEUNE E O CONCEITO DE AUTOBIOGRAFIA

Não são poucos os escritores brasileiros e de outras nacionalidades
que se dedicaram a escrever obras tematizando sobre os acontecimentos da
sua própria vida, a partir de exercícios memorialísticos e reflexões
relacionadas às suas vivências cotidianas.
A autobiografia destaca-se como
um gênero literário que se caracteriza pelo
seu estilo narrativo destinado a relatar a
experiência de vida do seu autor. Trata-se
de um texto geralmente escrito em prosa,
onde o próprio autor é biografado por si
mesmo. Sendo assim, o texto é formulado
na primeira pessoa do singular,
predominando sempre a voz de quem
escreve, narra, reflete.
Um dos maiores estudiosos e
especialistas em autobiografia é o francês
Philippe Lejeune (1938). A partir das suas
obras, podemos perceber que a prática da autobiografia é algo muito antigo,
ou seja, essa necessidade do homem de fixar através do registro escrito as
suas vivências não é tão nova como muitos imaginam. Porém, o
desenvolvimento da literatura íntima, ou seja, desse gênero confessional, só
ganha um papel relevante com o estabelecimento da burguesia, responsável
por disseminar a noção de indivíduo, pois é nesse período que o homem
ocidental começa a adquirir a convicção histórica da sua existência.
De acordo com Philippe Lejeune, a autobiografia é uma “narrativa
(récit) retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria
existência enfatizando sua vida individual, em particular, a história de sua
personalidade” (LEJEUNE, 1986, p.15). Ao cunhar o conceito de “pacto
autográfico” a fim de oferecer uma maior clareza do que venha a ser, de fato,
autobiografia, ele nos apresenta a seguinte definição:
Todo texto regido por um pacto autobiográfico onde um
autor propõe ao leitor um discurso sobre si, mas também
uma realização particular deste discurso, aquela onde se
responde à questão “quem sou eu?” por uma narrativa que
diz “como eu me tornei assim” (LEJEUNE, 1986, p.19). O
espacejamento tem que ser simples das citações diretas
longas.
Assim podemos afirmar que toda autobiografia tem um
compromisso com a verdade, sendo que qualquer fato inventado e sem
veracidade faria com que ela perdesse seu caráter autobiográfico para se
DICAS
MORÃO, Paula. (Org.).Autobiografia; autorepresentação.Lisboa:Colibri/CEC, 2004.
221
Figura 56: Philippe Lejeune
Fonte: http://philippeamen.canalblog.
com/images/philippe_lejeune.jpg
tornar um texto ficcional. A autobiografia não pode ser uma invenção
resultante da imaginação do seu autor como acontece nos romances, mas
trata-se de um gênero literário que exige plena fidelidade quanto à verdade
dos fatos, mesmo que o seu autor utilize-se de alguns recursos metafóricos e
de criação.
AUTOBIOGRAFIA COMO LITERATURA CONFESSIONAL
Apresentaremos agora um breve comentário acerca de três obras
que, coincidentemente, possuem o mesmo título, Confissões, e que foram
escritas por autores pertencentes a três épocas e períodos históricos
totalmente diferentes: Santo Agostinho (354-430), Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) e Darcy Ribeiro (1922-1997).
Nessas obras é possível observar que os seus autores, cada um a seu
modo, relatam fatos significativos de suas vidas, enfatizando as suas
experiências e reflexões. Evidentemente, cada qual impulsionado por seus
próprios motivos. Não há dúvida de que essas obras constituem-se como
fontes importantes para o estudo da autobiografia como gênero literário.
a) Santo Agostinho
Nas suas Confissões, escrita em 397-
398, Santo Agostinho, bispo católico, teólogo,
filósofo, doutor da Igreja, nascido no norte da
África, relata de maneira minuciosa e até mesmo
poética, a trajetória da sua vida antes de se
tornar cristão e o processo da sua conversão ao
cristianismo.
Trata-se de uma obra que explora os
aspectos autobiográficos em conformidade com
o pensamento teológico e filosófico do autor,
uma vez que Santo Agostinho tem como meta
fundamental mostrar, a partir dos seus erros e
pecados, a sua pequenez diante da grandeza de
Deus.
Nos relatos que se compõem as comoventes páginas de Confissões,
encontramos os seguintes temas relacionados à vida do seu autor: a infância,
os pecados da adolescência, os estudos, a sua atividade de professor, sua
estada em Roma e em Milão e o seu encontro com Santo Ambrósio, a
relação com os amigos e com a sua mãe Mônica, a descoberta de Deus, a
conversão e o batismo, dentre outros. Vejamos um pequeno trecho da obra:
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Letras/Português Caderno Didático II - 2º Período
Figura 57: Santo Agostinho.
Fonte: http://www.cot.org.br/
igreja/img/santo-agostinho.jpg
Durante esse período de nove anos desde os dezenove até os
vinte e oito, cercado de muitas paixões, era seduzido e
seduzia, era enganado e enganava: às claras, com as ciências
a que chamam liberais, e às ocultas sob o falso nome de
religião. Aqui ostentava-me soberbo, além supersticioso e
em toda parte vaidoso. Ora corria atrás da futilidade da glória
popular, até aos aplausos dos teatros, dos jogos florais, ao
torneio de coroa de feno, às bagatelas de espetáculos e
paixões desenfreadas, ora desejando purificar-me destas
nódoas, conduzindo aos que eram chamados “eleitos” e
“santos” , alimentos com que, na oficina dos seus estômagos,
fabricassem anjos e deuses que me dessem a liberdade.
Seguia estas práticas, dando-me a elas com meus amigos,
iludidos por mim e comigo. (SANTO AGOSTINHO,
Confissões.)
Faz-se necessário ressaltar que hoje Confissões, de Santo Agostinho,
é o seu livro mais lido. Além de se caraterizar pela sua estrutura
autobiográfica, a obra também possui um teor místico, sobretudo ao retratar
o drama de uma alma que se redime. As angústias, dúvidas e atribulações
vividas pelo autor são apresentadas de forma profunda e original.
b) Jean-Jacques Rousseau
Jean-Jacques Rousseau,
filósofo nascido em Genebra/Suíça e
falecido em Paris, considerado um
dos precursores do Romantismo,
escreveu uma obra de suma
importância para o pensamento
ocidental, cujo título também é
Confissões e que narra os fatos da sua
vida e expõe muito das suas ideias
sobre filosofia, religião, política,
antropologia e sociedade.
Essa obra parece estar
imbuída de duas tarefas: relatar as
experiências e inquietações de uma
vida particular e, ao mesmo tempo, apresentar ao leitor uma visão
extremamente reflexiva e de alto valor filosófico sobre a natureza humana.
Apesar disso, conforme nos mostra José Oscar Almeida Marques,
“só muito recentemente as Confissões foram reconhecidas como obra de
valor filosófico” (MARQUES, 2004). Ele nos lembra ainda que “em
contrapartida, a influência literária dessa obra foi enorme e imediata, tendo
criado, sozinha, o próprio gênero da autobiografia, sendo que nem esta
palavra existia antes” (MARQUES, 2004) Em uma das suas passagens, assim
expressa Rousseau:
223
Teoria da Literatura UAB/Unimontes
Figura 58: Jean-Jacques Rousseau.
Fonte: http://www.estacaoliberdade.com.
br/autores/rousseau.jpg
Meu pai, depois do nascimento de meu único irmão, partiu
para Constantinopla, para onde fora chamado, e tornou-se
relojoeiro do harém. Em sua ausência, a beleza de minha
mãe, seu espírito, seus dons, atraíram-lhe homenagens. M.
de la Closure, ministro residente de França, foi um dos mais
solícitos em apresentá-las. Era preciso que tal paixão fosse
bem viva para que, ao fim de trinta anos, eu o visse
enternecer-se ao falar-me dela. Para defender-se, minha
mãe tinha mais do que a virtude: amava ternamente o
marido. Apressou-o a voltar: ele abandonou tudo e voltou.
Fui o triste fruto de tal regresso. Dez meses depois nasci fraco
e doentio. Meu nascimento custou a vida de minha mãe e foi
a primeira de minhas infelicidades. (Rousseau, Confissões.)
O espacejamento tem que ser simples das citações diretas
longas.
c) Darcy Ribeiro
O antropólogo Darcy Ribeiro,
nascido em Montes Claros, membro
da Academia Brasileira de Letras,
também escreveu a sua autobiografia,
livro concluído quarenta dias antes da
sua morte, em 1997. Também com o
título de Confissões, a exemplo de
Santo Agostinho e Jean-Jacques
Rousseau, o livro traz um relato repleto
de humor e ironia, escrito através de
um estilo marcadamente coloquial,
sobre a vida do autor, os casos curiosos
da sua família e as suas ideias políticas.
Sem dúvida, trata-se de uma
obra fundamental para compreender a
trajetória desse importante intelectual montes-clarense que se destacou
também como político. Intelectualmente dotado de ideias originais, Darcy
Ribeiro, autor de várias outras obras, revelou-se como um grande estudioso
da cultura brasileira, sendo que em Confissões é possível observar
claramente a riqueza com que o mesmo constrói, através da sua implacável
memória, uma obra densa sobre si mesmo e também sobre pontos
importantes da história do Brasil. Assim ele nos diz:
Escrevi estas Confissões urgido por duas lanças. Meu medopânico
de morrer antes de dizer a que vim. Meu medo ainda
maior de que sobreviessem as dores terminais e as drogas
heroicas trazendo com elas as bobeiras do barato (...) Este
livro meu, ao contrário dos outros todos, cheios de datas e
precisões, é um mero recanto espontâneo. Recapitulo aqui,
como me vem à cabeça, o que sucedeu pela vida afora,
desde o começo, sob o olhar de Fininha, até agora, sozinho
neste mundo . (...) Quero muito que minhas Confissões
ATIVIDADES
Após compreender o que é
autobiografia, elabore um
pequeno texto de caráter
autobiográfico, relatando
um fato interessante da sua
infância, uma experiência,
algum acontecimento que
você julga ser de muita
importância na sua
trajetória pessoal.
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Letras/Português Caderno Didático II - 2º Período
Figura 59: Darcy Ribeiro.
Fonte: http://www.portalgiro.com/
girocultural/supernews/admin/upload_
imagens/darcyribeiro.jpg

REFERÊNCIAS

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. (Org.
Jovita Gerheim Noronhoa). Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.
LIMA, Luiz Costa. A literatura e o leitor: textos da estética da recepção. Rio
de Janeiro: Paz e terra, 1979.
MARQUES, José Oscar Almeida. “Rousseau e a forma moderna da
autobiografia”. IX Congresso Internacional da Associação Brasileira de
Literatura Comparada (ABRALIC), Instituto de Letras da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 2004.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica e escritura. 2ª ed. São Paulo: Ática,
1993.
RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
ROGEL, Samuel. Manual de Teoria literária. Petrópolis: Vozes, 1984.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
SANTO AGOSTINHO. Confissões. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina.
Petrópolis: Vozes, 2002.
Todas as imagens desta Unidade foram extraídas dos sites:
www.imagem.com.br e www.mundodosfilosofos.com.br

ATIVIDADE

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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O QUE É UM CONTO ?

Tentarei, como em um conto, ser conciso em explicar o que seja um Conto. Conto é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho em relação ao romance, que é muito extenso). O eixo narrativo do conto aborda um só conflito, um só drama e uma só ação, diferentemente das novelas. O conto precisa causar um efeito singular no leitor, não pode ser enfadonho, deve causar muita excitação e emotividade e prender a atenção, sendo o gênero literário mais moderno e que maior vitalidade possui, pela simples razão que as pessoas jamais deixarão de contar o que se passa, nem de interessar-se pelo que lhes contam bem contado. Ao escritor de contos dá-se o nome de contista. É geralmente uma história curta, sucinta, porém a mais difícil e a mais disciplinada forma de escrever prosa, pois num romance, pode o escritor ser mais descuidado e deixar escórias e superfluidades, que seriam descartáveis, mas num conto quase todas as palavras devem estar em seus lugares exatos, com uma precisão cirúrgico-literária. O contista não pode ser prolixo. Como principais características do conto, a concisão, a precisão, a densidade, devem surtir no leitor uma unidade de efeito ou impressão total. No conto ou fábula, quando os personagens são objetos ou seres inanimados recebe o nome de apólogo. Aproveite e leia no nosso Navegador o título Um Apólogo, onde as personagens são uma agulha e um novelo de lã. Contos são estórias curtas, menores que novelas (que são longas). Contos-de-fadas - são contos de fadas, onde aparece o sobrenatural, o maravilhoso; Contos-de-encantamento - são estórias que apresentam metamorfoses, ou transformações, por encantamento, a maioria; Contos maravilhosos - são estórias que apresentam o elemento mágico, sobrenatural, integrado naturalmente nas situações apresentadas; Contos de enigma ou mistério - são estórias que têm como eixo um enigma a ser desvendado; Contos jocosos - são estórias humorísticas ou divertidas. Abrindo o leque de contistas em língua portuguesa, destacamos: Machado de Assis, Aluísio de Azevedo, os quais abriram espaços para outros contistas, como Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Lima Barreto, Dinah Silveira de Queiroz, J.J.Veiga, Rubem Fonseca, Ana C. César, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Hilda Hilst, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Lygia Fagundes Telles, Victor Giudice, João Antônio, Luiz Fernando Veríssimo, Raduan Nassar e Nélida Piñon, para ficar somente nestes, não desmerecendo outros. EXTRAÍDO DE: http://www.fabulasecontos.com.br/?pg=descricao&id=221

CONTO: A CARTOMANTE

Machado de Assis Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. — Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade... — Errou! Interrompeu Camilo, rindo. — Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria... Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois... — Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa. — Onde é a casa? — Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca. Camilo riu outra vez: — Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe. Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita. Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando. Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante. Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo. — É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor. Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição. Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor. Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam. Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas. Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato. Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível. — Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a... Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas. No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera. — Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel. Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto. Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo. — Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim... Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino. Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça: — Anda! agora! empurra! vá! vá! Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...? Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio. A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe: — Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto... Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo. — E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não... — A mim e a ela, explicou vivamente ele. A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso. — As cartas dizem-me... Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta. — A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante. Esta levantou-se, rindo. — Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato... E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço. — Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar? — Pergunte ao seu coração, respondeu ela. Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis. — Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu... A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo. Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo. — Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro. E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz. A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável. Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela. — Desculpa, não pude vir mais cedo; que há? Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão. Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído. Com esta publicação homenageamos Machado de Assis que, no dia 21 deste, estaria completando seu 172° aniversário. Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".

CONTO: VENHA VER O PÔR-DO-SOL

Lygia Fagundes Telles ELA SUBIU sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde. Ele a esperava encostado a uma árvore. Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante. - Minha querida Raquel. Ela encarou-o, séria. E olhou para os próprios sapatos. - Vejam que lama. Só mesmo você inventaria um encontro num lugar destes. Que idéia, Ricardo, que idéia! Tive que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima Ele sorriu entre malicioso e ingênuo. - Jamais, não é? Pensei que viesse vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância...Quando você andava comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra? - Foi para falar sobre isso que você me fez subir até aqui? - perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um cigarro. - Hem?! - Ah, Raquel... - e ele tomou-a pelo braço rindo. - Você está uma coisa de linda. E fuma agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado...Juro que eu tinha que ver uma vez toda essa beleza, sentir esse perfume. Então fiz mal? - Podia ter escolhido um outro lugar, não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?Ele voltou-se para o velho muro arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem. - Cemitério abandonado, meu anjo. Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do companheiro. Sorriu. - Ricardo e suas idéias. E agora? Qual é o programa? Brandamente ele a tomou pela cintura. - Conheço bem tudo isso, minha gente está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais lindo do mundo. Perplexa, ela encarou-o um instante. E vergou a cabeça para trás numa risada. - Ver o pôr do sol!...Ah, meu Deus...Fabuloso, fabuloso!...Me implora um último encontro, me atormenta dias seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério... Ele riu também, afetando encabulamento como um menino pilhado em falta. - Raquel minha querida, não faça assim comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura... - E você acha que eu iria? - Não se zangue, sei que não iria, você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um instante numa rua afastada...- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento –Você fez bem em vir. - Quer dizer que o programa... E não podíamos tomar alguma coisa num bar? - Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se entende. - Mas eu pago. - Com o dinheiro dele? Prefiro beber formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico. Ela olhou em redor. Puxou o braço que ele apertava. - Foi um risco enorme Ricardo. Ele é ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos, então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas idéias vai me consertar a vida. - Mas me lembrei deste lugar justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado – prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui. - É um risco enorme, já disse . Não insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros. - Mas enterro de quem? Raquel, Raquel, quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode me dar o braço, não tenha medo... O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados. - É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega. - Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre. Delicadamente ele beijou-lhe a mão. - Você prometeu dar um fim de tarde a este seu escravo. - É, mas fiz mal. Pode ser muito engraçado, mas não quero me arriscar mais. - Ele é tão rico assim? - Riquíssimo. Vai me levar agora numa viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o Oriente, meu caro...Ele apanhou um pedregulho e fechou-o na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu, envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.- Eu também te levei um dia para passear de barco, lembra? Recostando a cabeça no ombro do homem, ela retardou o passo. - Sabe Ricardo, acho que você é mesmo tantã...Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como agüentei tanto, imagine um ano. - É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?- Nenhum - respondeu ela, franzindo os lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: - A minha querida esposa, eternas saudades - leu em voz baixa. Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco essa eternidade. Ele atirou o pedregulho num canteiro ressequido. Mas é esse abandono na morte que faz o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as folhas...Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso.Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou. - Está bem, mas agora vamos embora que já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. - Chega Ricardo, quero ir embora. - Mais alguns passos... - Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta. - A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. - Sua prima também? - Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.- Vocês se amaram? - Ela me amou. Foi a única criatura que...- Fez um gesto. – Enfim não tem importância. Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e depois devolveu-o - Eu gostei de você, Ricardo. - E eu te amei. E te amo ainda. Percebe agora a diferença? Um pássaro rompeu o cipreste e soltou um grito. Ela estremeceu. - Esfriou, não? Vamos embora. - Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos. Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba. Ela entrou na ponta dos pés, evitando roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha. - Que triste é isto, Ricardo. Nunca mais você esteve aqui?Ele tocou na face da imagem recoberta de poeira. Sorriu melancólico. - Sei que você gostaria de encontrar tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo? - Mas já disse que o que eu mais amo neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta. Ela adiantou-se e espiou através das enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo, os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito retângulo cinzento. - E lá embaixo? - Pois lá estão as gavetas. E, nas gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é grandiosa?Detendo-se no topo da escada, ela inclinou-se mais para ver melhor. - Todas estas gavetas estão cheias?- Cheias?... - Sorriu.- Só as que tem o retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão esmaltado, embutido no centro da gaveta. Ela cruzou os braços. Falou baixinho, um ligeiro tremor na voz. - Vamos, Ricardo, vamos. - Você está com medo? - Claro que não, estou é com frio. Suba e vamos embora, estou com frio! Ele não respondeu. Adiantara-se até um dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o medalhão frouxamente iluminado: - A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus. Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar em nada. - Que frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando... Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira. - Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos. - Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti... Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada. Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso. - Isto nunca foi o jazigo da sua família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu? Ele esperou que ela chegasse quase a tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave, arrancou-a da fechadura e saltou para trás. - Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um idiota desses. Brincadeira mais estúpida! - Uma réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo. Ela sacudia a portinhola. - Ricardo, chega, já disse! Chega! Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante, os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. - Ouça, meu bem, foi engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra... Ele já não sorria. Estava sério, os olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em leque. - Boa noite, Raquel. - Chega, Ricardo! Você vai me pagar!... - gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.- Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando. - Não, não... Voltado ainda para ela, ele chegara até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas. - Boa noite, meu anjo. Os lábios dela se pregavam um ao outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa expressão embrutecida. - Não... Guardando a chave no bolso, ele retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho, inumano: - NÃO! Durante algum tempo ele ainda ouviu os gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado. Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao longe brincavam de roda.

CONTO: A TERCEIRA MARGEM DO RIO

A Terceira Margem do Rio Guimarães Rosa Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta. Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho. Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa. No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava. Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele. A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos. Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados. Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos. Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia. Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio. Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos. Tudo sobre o autor e sua obra em "Biografias".http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp A terceira margem do rio (Conto de Primeiras estórias), de Guimarães Rosa Análise da obra A terceira margem do rio, da obra Primeiras estórias, de Guimarães Rosa, é narrado em primeira pessoa e é o mais famoso e o mais aberto conto do autor. Existe no conto uma intertextualidade bíblica com Noé. Tempo Neste conto o tempo cronológico é de um longo período, toda a vida do narrador. Mas a intensidade com que as impressões e o amadurecimento do narrador são trabalhados dão enfoque ao tempo psicológico. Espaço O espaço é delimitado pela presença concreta do rio, caracterizando a paisagem rural de sempre. Desse espaço, como foi comentado anteriormente, emanam magia e transcendentalismo aos olhos do leitor, no ir e vir do rio e da vida. Personagens Os personagens são: filho (narrador-personagem), pai (“virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia”), mãe, irmã, irmão, tio (irmão da mãe), mestre, Padre, dois soldados e jornalistas. Esses personagens, sem nomes, acabam se caracterizando como tipos sociais, por suas funções na história. A observação desse aspecto já mostra, no pai, a tendência ao isolamento. Sempre fora a mãe a responsável pelo comando prático da família. O pai, sempre quieto. O filho e narrador não foi aceito na infância para companheiro do pai no seu desafio. Na maturidade, quando tem a oportunidade, acha não estar preparado para ir rumo ao desconhecido, ao "inominável". Recursos de estilo • Toda essa estranha história vem vazada no já comentado estilo típico de Guimarães Rosa. A oralidade é reproduzida na fala do narrador: Do que eu mesmo em alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente. • As frases, curtas e coordenadas, independentes, garantem um ritmo lento e pausado à leitura: Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá concordando. • A sintaxe é recriada de maneira inusitada, provocando estranhezas durante a leitura: "não fez a alguma recomendação", "nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele". • A repetição também é um recurso expressivo comum ao autor, como no caso: e o rio-rio-rio, o rio sempre fazendo perpétuo. • Neologismos também estão presentes ("diluso", talvez variante de diluto, diluído; ou "bubuiasse") ao lado de termos regionais como "trouxa", no sentido de comida e roupas, típico no falar dos boiadeiros; além de outras palavras pouco comuns: encalcou, entestou etc. • As figuras de linguagem reforçam o lado poético do conto como exemplificam a gradação "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!", a antítese "perto e longe de sua família dele", além do próprio caráter metafórico do rio. Sem dúvida, todos esses recursos geram dificuldade ao leitor que desafia a obra rosiana. Mas, uma vez enfrentados, eles permitem o acesso ao mundo do "encantatório", ao mundo do desconhecido, da terceira margem, que só poderia ser recriado por uma linguagem também recriada e nova, capaz de refletir todo o deslumbramento desse universo. A temática deste conto é a loucura. Desde o título, o leitor já depara com o insólito da obra rosiana: o que vem a ser a terceira margem do rio? A expressão provoca o entendimento a fim de despertá-lo para o mundo do inconsciente, do abstrato. A terceira margem é aquilo que não se vê, que não se toca, que não se conhece. O pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o desconhecido dentro de si mesmo; o isolamento é a única maneira encontrada para procurar entender os mistérios da alma, o incompreensível da vida. A estranha história do homem que abandona sua família para viver em uma canoa e nunca mais sair dela é o argumento exemplar usado pelo autor para discorrer sobre o medo do desconhecido. O rio sempre teve destaque na imaginação do autor: […] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade. Guimarães Rosa Um aspecto interessante a ser notado é que o narrador, quando criança, queria embarcar com o pai. Este o impediu. Adulto, intui o porquê da busca do pai e, chegando-se à margem do rio, diz que quer substituí-lo. É o único momento em que o velho se manifesta, indo em direção à margem. No entanto, o narrador fica com medo da imagem do pai, que parecia vir do outro mundo. Foge. Por isso, torna-se a única personagem fracassada, pois não foi capaz de transcender, de realizar seu salto. Resumo do conto A terceira margem do rio conta a história de um homem que evade de toda e qualquer convivência com a família e com a sociedade, preferindo a completa solidão do rio, lugar em que, dentro de uma canoa, rema “rio abaixo, rio a fora, rio a dentro”. Por contradizer os padrões normais de comportamento, ele é tido como um desequilibrado. O narrador-personagem é seu filho e relata todas as tentativa da família, parentes, vizinhos e conhecidos de estabelecer algum tipo de comunicação com o solitário remador. Contudo o pai recusa qualquer contato. A família, inicialmente aturdida com a atitude inusitada do pai, vai-se acostumando com seu abandono. Com o tempo, mudam-se da fazenda onde residiam; a irmã casa-se e vai embora, levando a mãe; o irmão também muda-se para outra cidade. Somente o narrador permanece. Sua vida torna-se reclusa e sem sentido, a não ser pelo desejo obstinado de entender os motivos da ausência do pai: “Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio-pondo perpétuo.” Um dia, dirige-se ao rio, grita pelo pai e propõe tomar o seu lugar na canoa. Mediante a concordância dele, o filho foge, apavorado, desistindo da idéia: “E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (...) Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.” O narrador-personagem nos dá a conhecer um ser humano cujos ideais de vida divergem dos padrões aceitos como normais. Trata-se do pai do narrador, o qual com sua atitude obstinada, ao mesmo tempo, afronta e perturba seus familiares e conhecidos, que se vêem obrigados a questionar as razões de seu isolamento e alienação. O único a persistir na busca de entendimento da opção do pai é o narrador, que não descuida dele e chega a desejar substituí-lo. A escolha do isolamento no rio instiga permanentemente o filho. Este é levado a questionar o próprio existir humano. Texto postado em: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/a/a_terceira_margem_do_rio_conto

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Atividades de Leitura (Literatura Comparada)

Bom dia, espero que esteja tudo em paz com você.

Repasse esta mensagem à turma para entrar nos Blogs e tecer comentários.

Veja as atividades pelos nomes de cada colega:

ATIVIDADE I:

1. Renata - comentar analisando o texto de Sinara.

2. Sinara - comentar analisando o texto de Jéssica(Paula)

3.Jéssica(Paula) - comentar analisando o texto de Renata

4.Letícia - comentar analisando o texto de Nadiny

5. Nadiny - coementar analisando o texto de Nayara

6. Nayara - comentar analisando o texto de Paula

7. Paula - comentar analisando o texto de Ianny

8. Ianny - comentar analisando o texto de Janaina

9. Janaína - comentara analisando o texto de Alexandrina

10. Alexandrina - comentar o texto de Dayane

11. Dayane - comentar o texto de Nadiny.



ATIVIDADE II

Visite o blog da Profa. Generosa Souto e leia o texto de Literatura comparada todo. Depois, faça o seu comentário completo. Será avaliado.

Esperamos a visita de todos os alunos.



Abraço,

Profa. Generosa Souto

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Os Percursos da Literatura Comparada


Por Paula Alvim Gattás Bara


1. Introdução
Definir a Literatura Comparada é uma tarefa árdua que, na verdade, não leva ao surgimento de conclusões que facilitem compreendê-la. Fundamentar sua metodologia, seus objetivos e seu objeto de estudo, enfim, o campo da disciplina Literatura Comparada cria inúmeras divergências uma vez que não há uma unanimidade entre os estudiosos do comparativismo. A dificuldade de definir seus fundamentos dá-se, também, pelo fato de que esta disciplina não seja imutável; ela muda, constantemente, tanto no tempo quanto no espaço, o que corrobora sua tendência de ajustar-se aos métodos críticos literários que entram em cena no século XX.
O surgimento da Literatura Comparada coincide com o da própria literatura . Como seu objetivo primário é confrontar duas ou mais literaturas, bastou que elas emergissem para o comparativismo manifestar-se. Portanto, o nascimento das literaturas grega e romana é também o marco do nascimento da Literatura Comparada.
Apesar de ter despontado há milhares de anos, a Literatura Comparada surge como disciplina e de uma maneira sistematizada no século XIX e num contexto europeu. Ela visa a estabelecer a influência entre autores, servindo de instrumento para mostrar a força de um país sobre outro. Do século XIX até meados do século XX, o vocábulo que melhor define a Literatura Comparada, isto é, sua palavra-chave, é influência, pois ela representa uma ferramenta de afirmação de um país e de culturas nacionais.
A partir dos anos 50 e 60 do século passado, René Wellek ajuda a estruturar a Teoria da Literatura como disciplina e introduz uma ruptura com o comparativismo tradicional. Esse estudioso propõe que a Literatura Comparada represente uma leitura profunda de um texto sem levar em conta somente fatores que lhe são extrínsecos, ou seja, ele atribui ao contextualismo, que é tão importante para os comparatistas que o precedem, menos importância.
Nos dias atuais, a Literatura Comparada vem ampliando o âmbito de sua pesquisa, fazendo com que o lugar do texto literário na sociedade possa ser revisto. Sem o viés tradicional, passa-se a estudar a relação entre literatura e vida cultural, outras artes e seu público.
Enquanto que em seus primórdios a Literatura Comparada encontra-se muito ligada ao nacionalismo, criando relações de submissão cultural, atualmente baniu-se o vocábulo “influência” de seu léxico, deslocando sua atenção para um campo de estudo muito mais abrangente, o qual rompe com fronteiras culturais e busca firmar, ao invés de um confronto entre obras e autores, referências que o texto literário cria a partir de um ponto de vista internacional.
Este trabalho tem como objetivo traçar um perfil sucinto da disciplina Literatura Comparada desde o século XIX até os dias de hoje. Procurar-se-á estabelecer as características peculiares a certas correntes comparatistas, buscando um confronto entre elas em cima de seus aspectos, de seus discursos críticos e dos questionamentos que propõem.
Sabendo-se da dificuldade de definir a Literatura Comparada, o presente estudo não busca defini-la e sim estabelecer sua evolução através do tempo, do espaço e das novas teorias literárias que surgem a partir do século XX.

2. A Literatura Comparada no continente europeu

O século XIX, diante de uma visão cosmopolita, incitou o encontro de vários intelectuais europeus, os quais sentiam uma necessidade de estar em contato com literaturas estrangeiras. A Literatura Comparada foi inserida nas universidades francesas, a partir desse contexto, por Abel Villemain, Jean-Jacques Ampère e Philarète Chasles. Este último define em sua aula inaugural o que seria o comparativismo naquela época.

Deixe-nos avaliar a influência de pensamento sobre pensamento, a maneira pela qual povos transformam-se mutuamente, o que cada um deles deu e o que cada um deles recebeu; deixe-nos avaliar também o efeito deste perpétuo intercâmbio entre nacionalidades individuais (…)

Pode-se perceber que a palavra que traduz a concepção comparativista do século XIX é “influência”, havendo uma forte razão para sê-lo, uma vez que foi justamente nesse período que muitos países europeus se firmaram como nações e buscavam identificar suas raízes culturais. Com o alvo no estudo de fontes e influências, estabelecendo, portanto, filiações, isto é, uma relação de paternidade entre obras literárias, ou desviando um pouco o foco de atenção para vinculação dos estudos comparados com uma perspectiva histórica, a Literatura Comparada seguiu através de inúmeras vozes como de Gustave Lanson e de Emile Fauguet até a década de 1930, quando entrou em cena Paul Van Tieghem.
Em 1931, ele publicou La littérature comparée, revelando sua tradição historicista nos estudos comparados e estabelecendo a Literatura Comparada tanto como ramo da Literatura Geral quanto da historiografia literária. Paul Van Tieghem tem como objeto o estudo das diversas literaturas em suas relações entre si, como se ligam umas às outras na forma, no conteúdo, no estilo. Criando uma tríade, ele estabeleceu diferenças entre Literatura Nacional, Literatura Comparada e Literatura Geral.
Paul Van Tieghem foi o precursor da “escola francesa”, cuja metodologia baseia-se em três elementos: o emissor (ponto de partida da passagem de influência), o receptor (ponto de chegada) e o transmissor (intermediário entre o emissor e o receptor). Essa tendência mostrou-se muito contextualista uma vez que sua preocupação primordial não é a estrutura interna do texto, e sim o contexto que o envolve. Em Crítica Literária, História Literária, Literatura Comparada, Van Tieghem revela a pertinência que tem o contexto, no caso o emissor, em uma análise comparativista:

Aquela obra, aquele conjunto de obras que você leu com interesse, examinou e julgou, qual foi a sua origem, o que as ocasionou, qual o seu destino, em resumo, sua história? Este escritor que lhe agrada, como foi sua carreira, breve ou longa, brilhante ou obscura, abundante em publicações ou marcada por um único livro que é uma obra-prima? Sob que influências se formou, como se desenvolveu seu talento, que relações manteve com alguns de seus contemporâneos dos quais você leu certas produções?

No início do século XX, o poeta francês Paul Valéry deu cara nova ao conceito de influência literária, renovando as definições do comparativismo. Para ele, a dependência entre autores se dá como fonte de originalidade e não como imitação, sendo uma “intrusão do novo na criação” . Valer-se-á diretamente de sua formulação sobre a influência para melhor compreendê-la: “ocorre que a obra de um recebe no ser do outro um valor totalmente singular, engendrando conseqüências atuantes, impossíveis de serem previstas e, com freqüência, impossíveis de serem desvendadas” .
Valéry explica a influência recorrendo à psicologia, uma vez que o método objetivo de pesquisa de filiações e de causalidade por ele é abandonado, atribuindo ao conceito em questão um caráter emocional. Suas idéias sobre originalidade também são muito interessantes, pois isso se trata de assimilação, ou “caso de estômago”, segundo suas próprias palavras. A fronteira entre originalidade e plágio pode ser estabelecia através de como se digeriu a influência exercida por outros, sendo definida a partir da ação de uma obra sobre o escritor que a ela está exposto. Resumindo, a influência é um dos princípios fundamentais para a gênese de uma obra literária.
Na Inglaterra, T. S. Eliot também refletiu sobre os conceitos de influência e originalidade, gerando seu ensaio “Tradição e talento individual” e introduzindo conceitos que repercutiram nos estudos de Literatura Comparada. Segundo Eliot, tradição não é reprodução, e sim uma representacão dialética que envolve um senso histórico que permeia pelo passado e presente.

Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que deles fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos. Não se pode estimá-lo em si; é preciso situá-lo, para contraste e comparação, entre os mortos. Entendo isso como um princípio de estética, não apenas histórica, mas no sentido crítico. É necessário que ele seja harmônico, coeso, e não unilateral .

Originalidade seria, para este poeta, algo capaz de modificar a ordem existente, pois uma obra inovadora possibilitaria uma visão distinta até mesmo das outras obras que a precederam, renovando a tradição.
Também indo contra a concepção de influência e a superioridade da literatura de países da Europa Ocidental que esse vocábulo denotava, René Etimble critica a postura chauvinista e nacionalista da Literatura Comparada estabelecida pela “escola francesa”, inclinando-se para as idéias de René Wellek, que tem outra concepção de comparativismo como ver-se-á no próximo item. Etimble defende uma tendência anti-historicista e propõe que dois métodos tradicionalmente incompatíveis _ a investigação histórica e a reflexão crítica _ sejam combinados a fim de desenvolver uma poética comparada. Sua grande contribuição está na crítica que faz da hegemonia de países como França e Inglaterra, garantindo igual importância às “pequenas literaturas”, como a asiática, pois, para esse estudioso francês, qualquer literatura pode influenciar ou ser influenciada.
A partir da década de 1960, estudiosos do Leste Europeu ganharam voz e passaram a propagar suas idéias acerca da Literatura Comparada. Surge então Victor M. Zhirmunsky, que passou a considerar fatos literários independentemente de sua gênese e de seu contexto histórico, encarando a literatura a partir de um sistema de analogias tipológicas, ou importações culturais, que nada mais eram que outra forma de designar influência.
Este item se encerra com uma breve alusão à teoria da intertextualidade formulada por Julia Kristeva em cima da teoria do dialogismo concebida pelo formalista russo Bakhtin e à Estética da Recepção, dos alemães Iser e Jauss. A pertinência desses estudiosos se dá pelo fato de que, a partir de suas concepções, os conceitos de fonte, influência e originalidade se renovaram.
Bakhtin se preocupa com a idéia de que o texto literário não possui apenas uma voz. Na verdade, o texto é atravessado por diversas vozes, tanto direta quanto indiretamente, o que gera pontos de vista diferentes. A partir dessa idéia, Julia Kristeva cunha o termo intertextualidade, que seria o dialogismo aplicado em relação a textos diferentes. Aqui, a palavra-chave passa de influência para referência, uma vez que todo texto faz referências literárias e tem uma matriz que o precede. Portanto, usando as palavras de Kristeva, todo texto é um “mosaico de citações”, isto é, “o texto literário é uma rede de conexões” . A importância da intertextualiade para a Literatura Comparada encontra-se na questão que o intertexto é inerente à obra e não um processo genético.
A estética da recepção também é uma teoria literária absorvida pelos comparatistas. Nos anos 60, Wolfgang Iser e Robert Jauss restituíram ao leitor individuale coletivo, seu papel ativo em um texto literário. Contribuindo para a renovação dos estudos de influência
com seu objetivo de substituir a historiografia literária substancialista, fundada no estudo da obra e do autor, por uma historiografia voltada para o leitor, a estética da recepção abre perspectivas para que a influência já não se explique mais causal e geneticamente de obra a obra, de autor a autor, de nação a nação, mas como resultado complexo da recepção .

O continente europeu foi o berço da Literatura Comparada, sendo também cenário para sua evolução. Por toda sua extensão, verificaram-se tentativas de defini-la, compreendê-la e estruturá-la. O continente americano também foi sede para importantes lutas para a definição de uma crítica comparatista. Portanto, nos próximos itens, observar-se-á a repercussão e os desdobramentos da Literatura Comparada nos Estados Unidos, assim como na América Latina.

3. A Literatura Comparada nos Estados Unidos

O 2º Congresso da Associação Internacional de Literatura Comparada, realizado em Chapel Hill, em 1958, colocou em xeque a hegemonia francesa nos estudos comparatistas e foi um marco da ascensão dos Estados Unidos nesse campo.
Uma das pronunciações mais importantes, feita contra a chamada “escola francesa”, foi a do tcheco radicado nos EUA, René Wellek, segundo o qual os antigos mestres como Van Tighem falharam por não estabelecer um objeto de estudo e uma metodologia específicos e por ficar preso a um factualismo, a um cientificismo e a um relativismo histórico do século XIX. Wellek também critica a tentativa de Van Tieghem de distinguir a Literatura Comparada da Literatura Geral, pois

a literatura “comparada” restringe-se ao estudo das inter-relações entre duas literaturas, enquanto a literatura “geral” se preocupa com os movimentos e estilos que abrangem várias literaturas. Esta distinção, sem dúvida, é insustentável e impraticável. (…) Por que deveríamos distinguir um estudo sobre a influência de Byron em Heine de um estudo do byronismo na Alemanha? A tentativa de restringir a “literatura comparada” a um estudo de “comércio exterior” entre literaturas é certamente infeliz. A literatura comparada seria, em seu objeto de estudo, um conjunto incoerente de fragmentos não relacionados: uma rede de relações constantemente interrompidas e separadas dos conjuntos significativos. O comparatista qua comparatista, neste sentido limitado, só poderia estudar fontes e influências, causas e efeitos, e seria impedido, até mesmo, de investigar uma única obra de arte em sua totalidade, uma vez que nenhuma obra pode ser inteiramente reduzida a influências externas ou considerada um ponto irradiador de influência sobre países estrangeiros apenas .

Pode-se perceber que Wellek censura o estudo de fonte e influência, propondo uma análise centrada no texto, sem deixar de lado a relação entre texto e contexto, segundo ele um complemento fundamental. Influenciado pelo Formalismo Russo, pela Fenomenologia e pelo New Cristicism, nota-se que ele não se apóia somente na postura imanentista dessas correntes, buscando um equilíbrio entre a análise crítica do texto, o que a ele está intrínseco, e o elemento histórico, o qual, de maneira alguma, pode prescindir aquele.
Henry H. H. Remak também contribuiu muito para a Literatura Comparada, definindo o que seria a “escola americana”. O conceito que propôs, frisando uma variedade de abordagem e interdiscilpinaridade, não ajudou a estabelecer uma metodologia. No entanto, ele soube definir o objeto de trabalho, ampliando a definição de Literatura Comparada feita pela tradição francesa e frontalmente opondo-se a ela.
Remak passou a considerar, além do estudo comparado entre obras literárias, o estudo das relações entre literatura e outras artes, como, por exemplo, a pintura, a filosofia e a história. O que também cria um confronto entre os americanos e os franceses é a abolição de métodos rigorosamente históricos no novo continente e a admissão de estudos comparativos entre autores de uma mesma literatura nacional.
Apesar da origem espanhola, Claudio Guillén pode ser inserido no contexto norte-americano por ter atuado por muito tempo em universidades dos Estados Unidos. Ele contribuiu para a ampliação universal nos estudos comparatistas, estendendo seu foco de atenção a obras de diferentes procedências. Deslocando o significado de influência para uma perspectiva estética, Guillén conectou esse vocábulo ao processo criativo de composição, banindo sua concepção tradicional. A metodologia que o estudioso espanhol propõe critica a idéia de “transmissão” e mostra uma necessidade de comprovação de influência.

O método comparativo é insuficiente. A questão de possível influência de A sobre B não pode ser resolvida por uma simples comparação entre A e B. Cada estudo de influência é inicialmente um estudo da gênese de uma obra de arte e deve ser baseado no conhecimento e na interpretação dos componentes desta gênese. Estabelecer uma influência é fazer um juízo de valor, não é medir um fato. O crítico é obrigado a avaliar a função ou abrangência do efeito de A na formação de B, porque não estará fazendo uma lista da soma total desses efeitos,que são inúmeros;estará ordenando-os .

O crítico literário Harold Bloom exerceu e ainda exerce um papel importante nos estudos de Literatura Comparada, principalmente pelo que postulou em seu livro The Anxiety of Influence. O defensor do cânone universal procurou desmistificar o processo pelo qual um poeta ajuda a formar outro poeta e delineou uma teoria para uma crítica literária. Há duas palavras-chave para seu postulado: “poeta forte” e “desleitura”, pois “os grandes poetas fizeram história deslendo outros, de maneira a criar espaço imaginativo para si próprios” . Através de uma interpretação psicologizante, Bloom caracteriza o processo de desleitura, o qual envolve várias modalidades de apropriação, fazendo uso de seis termos clássicos: clinamen, que corresponde à desleitura, a partir da qual o poeta desvia-se de seu precursor; tessera, o processo através do qual o poeta completa o poema que o antecede, conservando seus termos, mas alterando seu significado; kenosis, isto é, marca de ruptura com o “poema-pai”, gerando seu esvaziamento; demonization, que significa uma abertura a algo que subjaz no poema antecedente; askesis, uma mutilação do “poema-pai” através do poeta que o esvazia, sendo uma forma de purgação; apophrades, correspondente a um retorno ao ponto inicial, pois “os poetas mortos voltam, mas voltam com as cores e as vozes dos poetas posteriores” .
A proposta de Harold Bloom se estabelece apenas na relação entre grandes poetas, partindo do pressuposto de que tal relação seja fruto somente de influências poéticas. Em busca do poeta no poeta, Bloom não considera os aspectos formais em uma obra para fazer um estudo comparativo, contrapondo-se à teoria da intertextualidade proposta por Kristeva, que enfatiza o texto. Para Cláudio Guillén, até certo ponto um entusiasta da teoria de Kristeva, Bloom peca do mesmo modo que os comparatistas tradicionais ao cair em um biografismo que psicologiza a intertextualidade, criando relações psíquicas entre escritores.
Nos últimos anos, em confronto direto com Harold Bloom, os estudos culturais foram adicionados à Literatura Comparada, tornando o campo de estudo em questão interdisciplinar, ou seja, comum tanto ao comparativismo quanto ao multiculturalismo. No entanto, é importante frisar que a Literatura Comparada atual nada se assemelha às mais antigas propostas de comparativismo. Hoje, seu objeto de estudo foi ampliado, não sendo mais o mero confronto de dois autores de nacionalidades diferentes. O que se procura é uma comparação feita em diversos níveis: entre literatura e literatura, entre literatura e arte, entre literatura e ciências sociais e aí por diante. Com os estudos culturais, que são caracterizados pelo diálogo com diversas áreas das ciências humanas e pelo discurso das minorias políticas, o cânone foi desafiado, pois passou-se também a valorizar a produção marginal, promovendo a voz recalcada do outro, do subalterno (do negro, da mulher, do homossexual), questões essas que, à crítica tradicional, nada interessavam.
Os Estudos Culturais tiveram sua origem em um ambiente americano, onde ainda mantém seu “governo”. Ainda geram muita polêmica, pois, para seus seguidores mais radicais, todo discurso é uma manifestação literária e pode ser analisado por um viés político. Parar-se-á por aqui, pois, como este estudo não tem a ambição de definir o que é Literatura Comparada.

4. A Literatura Comparada no contexto latino-americano

O comparativismo na América Latina trouxe à tona questões relativas à identidade cultural e à criação de uma literatura nacional, desbancando o modelo eurocêntrico de Literatura Comparada. No entanto, antes de conhecer esse processo de descolonização, houve muitos estudiosos que seguiram os modelos mais clássicos de comparativismo.
No Brasil, Tasso da Silveira absorveu integralmente o modelo francês de comparativismo e não apresentou nenhum inovação ou renovação. Seguindo as propostas de Van Tieghem, ele procurou definir fontes e influências, referindo-se a casos de imitação, empréstimo, filiação e importação (terminologia própria dos comparatistas da “escola francesa”). Tasso buscou, dessa maneira, definir “famílias literárias” através de um conhecimento erudito e enciclopédico, características básicas para traçar o perfil comparatista das grandes literaturas.
No entanto, o que se observa na América Latina a partir da década de 1960, até mesmo paralelamente a estudos de cunho tão tradicional como o de Tasso da Silveira, é uma reflexão sobre os modelos de literatura comparada vigentes na época. Buscou-se desvincular-se do domínio europeu propondo um discurso que mostra uma necessidade de descolonização. Uma das primeiras manifestações que buscou essa libertação foi a do argentino Guillermo Torre, que vinculou a idéia de autonomia absoluta de qualquer literatura, procurando uma independência cultural sem abolir o princípio de interdependência, colocando a literatura hispano-americana em plano de igualdade com as demais.
O uruguaio Ángel Rama também propõe uma visão única e global de literatura através de um aparato crítico que unifique todas as literaturas latino-americanas a fim de substituir o método historiográfico europeu, o qual se fundava na “identidade entre o país e o Estado-Nação integrado havia séculos em torno de um povo, uma história e uma língua comum” , realidade à qual a América Latina não pertencia. Rama procurou compor uma história unificadora, apoiando-se em um comparativismo cultural, ao invés de ser somente literário, que compreendesse as três raízes da América Latina: a espanhola, a portuguesa e a francesa, além de também considerar as culturas que não pertenciam a uma tradição românica, como as indígenas.
Quem também se pronunciou a favor da instauração de uma “nova” crítica literária comparatista na América Latina foi Ana Pizarro. Para ela, não se deve trabalhar com qualquer concepção positivista de comparação, mas com uma estrutura literária inserida em um contexto histórico e dinâmico. Devido à pluralidade cultural latino-americana, Pizarro elaborou uma tríplice dinâmica que direciona o comparativismo através do estudo da relação entre a América Latina e a Europa, entre as literaturas nacionais no interior da América Latina e entre as literaturas nacionais que geram tamanha heterogeneidade. Pizarro consubstancia suas idéias nas propostas de Réne Etimble, da estética da recepção e da intertextualidade.
Apesar de tantos nomes importantes que ajudaram a definir uma crítica comparatista na América Latina, o brasileiro Antonio Candido é a personalidade de mais relevância que será tratada neste item, uma vez que ele representa a realização do antigo projeto de busca da identidade nacional através da criação de um projeto de literatura nacional.
As contribuições de Antonio Candido para a Literatura Comparada na América Latina são inúmeras. Sua formulação dialética, segundo a qual entre o “localismo e o cosmopolitismo constitui uma lei de evolução da vida espiritual do Brasil” , não o deixa cair em um nacionalismo ingênuo, não ignorando, portanto, os problemas de influência, imitação e cópia da literatura de um país política, econômica e culturalmente dependente de outros.
Impregnado pela antropologia social inglesa, pelas idéias de T. S. Eliot e pelo New Criticism, Antonio Candido desenvolveu a questão de influência como um sistema integrado e dinâmico de autores, obras e público, que contribui “para formar a continuidade no tempo e para definir a fisionomia própria de cada momento” . Nota-se, nessa sua afirmação, seu propósito de inserir o estudo crítico literário tanto num sentido diacrônico quanto numa visão sincrônica.
O sentido de influência é visto sob vários espectros. Primeiramente, Antonio Candido reconhece que as literaturas latino-americanas são ramificações das literaturas metropolitanas, representando sua dependência cultural. Contudo, ao decorrer do tempo, a literatura dos “colonizados” passou a se mostrar original, colocando-se de forma igualitária ao lado da européia e contribuindo ao universo cultural. Isto posto, seu conceito de influência não carrega o sentido determinista, positivista ou colonialista, tornando-se algo que é assimilado reciprocamente, não sendo somente sofrida.
Ele prega a prática de análise de um texto, um movimento dialético entre o localismo e o cosmopolitismo e uma concepção de literatura como sistema que a relaciona com a sociedade. As propostas de Antonio Candido tornaram-se uma ferramenta de estudos comparatistas totalmente independentes de qualquer escola ou tendência de Literatura Comparada, distanciando, principalmente, da “escola francesa”.
No contexto brasileiro, muitos outros estudiosos contribuíram para a implantação de uma Literatura Comparada independente e renovada, como Silviano Santiago, Haroldo de Campos, Roberto Schwars e Leyla Perrone-Moisés. Suas formulações e idéias são muito distintas em vários aspectos. No entanto, todos trabalham com as idéias de fonte, influência, cópia e originalidade, descartando-as ou redefinindo-as. Alguns tentam provar que o pensamento latino é autóctone, como Silviano Santiago; outros negam “a mitológica exigência da criação a partir do nada” , como Roberto Schwars.
“A Literatura Comparada no contexto latino-americano” se encerra com uma citação de Leyla Perrone-Moisés, que mostra a repercussão da terminologia da Literatura Comparada em um contexto de uma literatura que já foi colonial, mostrando a necessidade de se opor à crítica comparada tradicional e de reformular e inovar as idéias comparatistas, a fim de que elas caibam no novo contexto latino-americano.

Há um crítico francês que chamou a atenção para o aspecto aquático e fluido desses termos: a “fonte”, isto é, a origem, de onde sai a água pura e influência”, que seria a recepção passiva desse fluxo. Ora, as literaturas americanas já nasceram em línguas que não lhe são próprias, línguas que já têm uma tradição. E como de fato já fomos colônias, permanece a sensação de dívida e, junto com ela, o rancor do povo devedor. Depois a palavra “comparar”, que está no nome da literatura comparada, já carrega a idéia de valor. Em gramática, um “comparativo” é “de superioridade”, “de igualdade” ou “de inferioridade”. E de acordo com os pressupostos historicistas da literatura comparada, na comparação de nossas literaturas com as literaturas metropolitanas, nós vamos sempre levar desvantagem .

5. W. H. Auden e Vinícius de Moraes tête-à-tête

A escolha de dois poetas que poderiam representar um exemplo de uma crítica literária comparatista não foi difícil, uma vez que há muito tempo vê-se uma relação entre eles. Figurarão nestas páginas o brasileiro Vinícius de Moraes e o inglês W. H. Auden.
Não foi possível escolher uma metodologia específica para este trabalho de Literatura Comparada. Contudo, após um estudo sobre as mais valiosas vozes que se pronunciaram desde o século XIX, pôde-se traçar um perfil de uma análise multifacetada, que leva em conta uma análise textual intrínseca e uma perspectiva histórica contextual.
Tanto Vinícius de Moraes quanto W. H. Auden têm uma obra muito extensa, que pode ser caratcterizada por períodos distintos por apresentarem diferenças nas suas diversas fases. Como neste estudo a prioridade não é estabelecer um comparativismo entre estes dois escritores, restringindo, assim, o espaço e a importância de uma análise literária, dois poemas foram escolhidos para estabelecer uma breve pesquisa comparada. Portanto, a presente análise é construída em cima de “Funeral Blues” e de “Soneto de Separação”.
Primeiramente, esta comparação, apesar de se basear na relação entre dois poetas de nacionalidades diferentes, não tem o cunho tradicionalista da “escola francesa” por estar abolindo a idéia de superioridade de textos europeus ao colocar os dois poetas em pés de igualdade. Para isso, o contraditório termo “influência” será tomado para dar início à análise dentro da perspectiva dos estudiosos atuais da Literatura Comparada.
Na poesia de Vinícius de Moraes, percebe-se características que também são peculiares à poética de Auden e procurar as raízes dessas similaridades é uma busca interessante. Ambos são homens que viveram numa mesma época, experimentando as mesmas angústias da fragmentação do século XX. Ambos são seres expatriados, que circularam por vários países do mundo sem conseguir realmente estabelecer suas origens. Auden viveu em sua terra natal, morou nos Estados Unidos e morreu na Áustria. Vinícius correu o mundo, viveu na Inglaterra (como estudante), nos Estados Unidos, na França e no Uruguai (como funcionário do Itamaraty), excursionando também pelo Brasil, construindo uma vida na Bahia e morrendo no Rio de Janeiro, sua terra natal. A princípio, esses dados contextuais e factuais podem parecer insignificantes, mas marcam um “encontro” entre os dois poetas. É certo que o que será dito a seguir parece possuir marcas de uma hierarquia literária, mas se pretende provar o contrário.
Em um artigo intitulado “Por que amo a Inglaterra”, Vinícius diz:

E que não dizer de minha grande dívida à poesia inglesa, de que já falei atrás, mas sobre o que quero voltar. Que não dizer do que devo a todos esses poetas todos que, desde Chaucer, desde os anônimos elizabetanos, comecei a ler e a amar, e que tanto me deram nos duros caminhos da poesia. O que não dizer da imensa dívida a Shakespeare, para mim o maior poeta da humanidade: das indescritíveis descobertas operadas no texto dos sonetos (…). O que não dizer das noites do terrível inverno de 1938, passadas no meu estúdio de High Street, em companhia de Milton, Dreyden, Blake, Wordsworth, Coleridge, Keats, Shelley, Lear, McNeice, Auden e Eliot;

Se Van Tieghem lesse esse texto escrito por Vinícius, ele o usaria para corroborar sua definição de influência. No entanto, não se dará uma relação de filiação, Auden e sobretudo a literatura inglesa não são “pais” da poética de Vinícius. O brasileiro os leu exaustivamente, mas reconstrói uma obra modificando a ordem existente; ele inovou, possibilitando uma visão diferente daquilo que o precedeu, renovando a tradição, segundo Eliot.
Vinícius de Moraes também reconhece que há outros poetas que o ajudaram a construir sua poética, mostrando que ela não possui pais, mas múltiplas vozes que a atravessam. Em carta a Lauro Escorel, Vinícius escreveu:

Poesia é Rimbaud, é Mallarmé, é Rilke, mas é também Neruda, e Éluard, e Fuchik. Os tempos mudaram_ que é que se vai fazer? Fazer poesia como fazem Eliot, Auden, Pound_ dentro dos “caminhos da poesia”? Ahn, ahn… Me parece fugir, voltar a cara, não querer se amolar. É possível que a poesia que eu esteja fazendo seja ruim_ o que é diferente. Mas acho absurdo quando dizes que não acreditas ser este o caminho da poesia, como de resto qualquer caminho vivido com sinceridade.

Apesar de serem claras as semelhanças entre Vinícius e Auden, como será discutido mais adiante, pode-se perceber que o poeta brasileiro não teve sua base somente na literatura inglesa, por ela representar a tradição literária dos países europeus ocidentais. Ele se voltou para os mais diferentes poetas que foram surgindo com o início do fim da supremacia européia.
Em Auden, há uma relação de intimidade e distância, pois ele presta atenção em si próprio, nas suas convicções e fraquezas, usando a linguagem em busca sua. O resultado disso pode ser notado em “Funeral Blues”, um poema sentimental, com uma temática amorosa, mas que foi escrito por um poeta que estava democraticamente ligado a sua audiência, utilizando o que ele chamou de light verse, isto é, poesia escrita em uma linguagem direta e similar ao discurso coloquial. No entanto, há algo escondido em sua poesia, revelando certa profundidade e complexidade na sua escrita aparentemente simples.
Esse tom anacrônico também se mistura a algo moderno em Vinícius de Moraes. Ele faz uso de um soneto (forma clássica de composição), mas o que impera em “Soneto de Separação” é uma extrema simplicidade, uma vez que o poema repousa na repetição do verbo “fazer” e na utilização de um advérbio tão comum: “de repente”. Por detrás, contudo, há um requinte imenso, desde o esquema rítmico até as aliterações.
É interessante notar que enquanto o poema de Auden se assemelha à fala coloquial, o poema de Vinícius carrega uma forte musicalidade, ele “realiza seus versos correndo o dedo pelo violão” . Isso é um fato que os une: conseguir aproximar o poema da oralidade sem que se perca ou diminua suas qualidades líricas.
Alguns dos poemas de temática amorosa mais belos foram escritos por Auden e Vinícius, como nota-se com a leitura de “Soneto de Separação” e “Funeral Blues”. O que os torna tão sublimes é o fato de que eles não se atêm à pieguice e ao sentimentalismo românticos do século XIX. São poemas que dessonelizam o que há de mais solene no amor. A perda, ou a morte como alguns preferem ver, ocorre de maneira sofrida, mas ambos se apegaram a algo corriqueiro para lhe dar uma gravidade que, em vez de vir do tom proferido, subjaz no paradoxo que é formado pela estrutura poética.
J. D. McClatchy escreveu: “Quem poderia imaginar Pound ou Eliot falando de cereais em um poema? Auden o fez” . Do mesmo modo, Vinícius é definido por Chico Buarque e Toquinho na canção “Samba pra Vinícius” como “poeta, poetinha vagabundo, poeta da pesada, do pagode, do perdão”. Portanto, o que os aproxima é, além de uma vida cheia de coincidências, uma essência poética que faz com que eles se assemelhem tanto na forma, quanto no conteúdo e na maneira de pensá-lo.
Não é Vinícius que se parece com Auden porque ele o leu. Os dois se parecem por abordaram temas de formas similares, por terem tido as mesmas fontes e por terem se identificado de maneira que os convergiu para um mesmo fazer poético.
6. Conclusão
Em todo este estudo, procurou-se discutir o comparativismo no tocante de algumas questões que são básicas para a Literatura Comparada. Procurou-se mostrar uma linha evolutiva que ela seguiu, a fim de sustentar a tese de que ela muda de acordo com as correntes de crítica literária que vão surgindo.
Pôde-se perceber que os estudos literários comparados não estão mais somente a serviço de uma afirmação de literaturas nacionais. Hoje, os estudos chegaram a tal ponto que se pode estabelece uma relação entre literatura e outras artes, não só realizando um paralelo entre dois textos literários.
Não se atendo a um comparativismo positivista e factualista, a Literatura Comparada atual reviu toda sua terminologia a fim de adequar esse campo de estudo às transformações de um mundo que deu voz às mais diferentes culturas que ficaram caladas por muito tempo assistindo à hegemonia dos países europeus ocidentais.

7. Bibliografia

AUDEN, W. H. As I walked out one evening. Nova York: Vintage, 1995.
BLOOM, Harold. Um Mapa da Desleitura. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
CARVALHAL, Tania Franco. Literatura comparada. São Paulo: Editora Ática, 1999.
CARVALHAL, Tania Franco e COUTINHO, Eduardo de Faria. Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
CASTRO, Ruy (org.). Querido poeta: correspondência de Vinícius de Moraes. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
ELIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989.
MORAES, Vinícius de. Vinícius de Moraes: poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
NITRINI, Sandra. Literatura Comparada: História, Teoria e Crítica. São Paulo: EDUSP, 1998.